domingo, 29 de maio de 2011

Evidências evolutivas: o passado impresso no corpo III (embriologia)

    Chegamos, finalmente, ao terceiro e último artigo sobre o tema “evidências evolutivas”. Ufa! São tantas, que deu pra cansar.
    No artigo anterior, falamos sobre as gambiarras evolutivas, órgãos readaptados para uma nova função ou com erros de projeto. O desenvolvimento embrionário não deixa de ser um tipo de gambiarra também.
    O motivo de dedicar um artigo inteiro ao tema é a bizarrice que podemos encontrar em estruturas claramente ancestrais mantidas nos nossos embriões, quase como se um embrião não soubesse produzir uma pessoa, sem antes produzir algo bem diferente dela. Algumas estruturas muito úteis em nossos ancestrais continuam sendo produzidas em nossos embriões, pois mudanças profundas no “programa embrionário” não seriam viáveis.
    O interesse no desenvolvimento embrionário é antigo. Leonardo da Vinci já esboçava, com toda sua genialidade, desenhos sobre o assunto.

Visão de da Vinci do embrião humano no útero.

    Posteriormente, os naturalistas dos séculos XVII e XVIII imaginaram o espermatozóide humano como um bebezinho pré-formado. Ou seja, o pai possuía a semente, e a mãe, coitada, era apenas o adubo. Serviriam apenas para nutrir a semente.

Espermatozóide segundo os naturalistas de antigamente.

    Atualmente, graças aos avanços da embriologia, citologia e genética, conhecemos muito sobre a formação de uma pessoa, e como suas características foram herdadas. Boa parte do nosso conhecimento vem da análise de embriões de outros animais, e comparação com os embriões humanos.
    As comparações mostraram semelhanças grandes nos embriões de animais muito diferentes na fase adulta, inclusive com vários órgãos sem utilidade nos adultos, mas presentes em fases embrionárias. Ninguém ai conhece pessoas com brânquias, não é? Mas todos nós já possuímos fendas branquiais. Claro, servem para respirar enquanto estamos dentro do útero, certo? Errado! Lembre-se que as trocas gasosas são feitas pelo cordão umbilical, via placenta. As fendas branquiais originam a mandíbula, a traqueia, os ossículos do ouvido e órgãos como o timo, não possuem função respiratória alguma.

Fendas ou arcos branquiais no embrião humano.

    Uma das explicações para as semelhanças foi proposta por Ernst Haeckel que afirmava que a “ontogenia recapitula a filogenia”, ou seja, as fases embrionárias imitam, repetem, os grupos de seres vivos estudados na taxonomia. De acordo com essa hipótese, nós teríamos uma fase embrionária que simula um peixe, outra que simula um anfíbio, e assim por diante. Sabemos atualmente que não é assim que acontece, mas realmente existe ligação entre a ontogenia e a filogenia.
    Várias das nossas fases embrionárias são comuns às de outros animais. Este fato evidencia um ancestral em comum. Em determinadas fases fica muito difícil diferenciar um embrião humano de outro de qualquer grupo de vertebrados.

Gravura de embriões de vertebrados em vários estágios de desenvolvimento.

    Abaixo relaciono algumas estruturas não encontradas em humanos adultos, mas presentes durante o desenvolvimento embrionário. Estas estruturas, mesmo não existindo após o nascimento, podem ser usadas para produzir órgãos úteis, por isso, defeitos nelas podem gerar malformações.

1- Fendas Branquiais

    São dobras laterais, localizadas nas paredes da faringe do embrião. Nos peixes e anfíbios formam as brânquias, ou guelras, que tem função de trocas gasosas; já os humanos utilizam pulmões na respiração.

Brânquias em um peixe ósseo, em larva de anfíbio e peixe cartilaginoso, respectivamente.

    Não seria então mais fácil trocar o projeto? Parar de produzir as brânquias e começar do zero com os pulmões? Não.
    Com certeza é mais prático mudar o programa das brânquias de forma sucessiva, aos poucos, até chegar aos pulmões. É mais fácil modificar um projeto passo a passo do que produzir um novo, radicalmente diferente; e foi o que aconteceu. As fendas branquiais acabaram modificadas para a produção de vários órgãos, como comentei anteriormente; mais gambiarras, como vimos no artigo anterior.
    Quando uma das fendas branquiais apresenta defeito no embrião, estruturas funcionais no adulto podem sofrer malformações, como o surgimento de cistos cervicais, que podem formar fístulas. Essas estruturas podem causar dor e sofrer rompimento para a pele, liberando um líquido esbranquiçado.

Erros nas gambiarras ancestrais. 1 - Cisto do ducto tireoglosso; e 2 - locais onde ele pode se manifestar. 3 - Cisto branquial na pessoa; 4 - sendo extraído; 5 – fístula no pescoço e 6 – próximas da orelha.

2- Notocorda

    A notocorda é um bastão dorsal encontrado nos embriões de todos os animais denominados cordados. Nos cordados primitivos, como o anfioxo, a notocorda permanece no adulto, servindo como estrutura de sustentação. Nos vertebrados, acaba sendo substituída pela coluna vertebral e auxiliando na formação dos ossos do crânio.

1 – anfioxo fixado; 2 – anfioxos; 3 – a coluna vertebral; 4 – corte de anfioxo evidenciando a notocorda no círculo próximo ao número; 5 e 6 - Pristella tetra, um animal com coluna vertebral visível.

    A presença de uma estrutura tão primitiva como a notocorda, encontrada em invertebrados adultos como o anfioxo, em embriões de animais vertebrados mais complexos serve de evidência de um ancestral comum a esses grupos. Usar esta estrutura para dar origem a novas foi a forma que os vertebrados desenvolveram para reaproveitá-la na formação de uma estrutura muito mais funcional, a coluna vertebral.

3- Membranas interdigitais

    Você já deve ter ouvido dizer que os embriões humanos possuem membranas entre os dedos, como as patas (não as fêmeas, os membros) dos patos e dos anfíbios. Nesses animais, essas estruturas são importantes, pois auxiliam na natação, mas nos seres humanos, desaparecem, deixando apenas os dedos.

As patas com membrana interdigital (dedos ligados) dos patos; e curioso caso de um pato que nasceu com uma anomalia, não possuindo a membrana entre os dedos.

    O desaparecimento dessa membrana ocorre por autólise, processo onde as células da região morrem e são reabsorvidas pelo corpo, modelando os dedos.

Mão humana no 48º dia de desenvolvimento.

    Como no exemplo das fendas branquiais, os melhores casos para estudo são quando ocorre falha nesse mecanismo. Quando uma pessoa nasce com dedos ligados devido a problemas no processo de morte das células da membrana interdigital, chamamos de sindactilia. A fusão pode ser tanto pela pele quanto óssea, o que dificulta uma cirurgia.

1 – pessoa com sindactilia nos dedos dos pés; 2 e 3 – criança chinesa que nasceu com duas anomalias, algo altamente improvável, possuindo sindactilia e polidactilia (mais de cinco dedos nos membros) ao mesmo tempo; 4 e 5 – raios-x das mãos e pés da mesma criança.

    A análise das anomalias que podem surgir nos dedos lançam a seguinte pergunta: Qual o motivo dessas membranas serem formadas inicialmente? Parece um tremendo desperdício criar um monte de células somente para depois eliminá-las. Isso é algo que só faz sentido através da seleção natural. Lembre-se, a evolução não cria necessariamente o melhor projeto, mas com certeza privilegia os que funcionam, mesmo que não seja a melhor opção.

4- Cauda

    Já comentamos sobre o nascimento de alguns bebês com cauda no artigo anterior. Durante o desenvolvimento embrionário, forma-se uma cauda que, posteriormente, acaba desaparecendo pela fusão das vértebras, criando uma estrutura vestigial denominada cóccix.
    Em muitos dos casos de crianças com caudas, não existe esqueleto interno, mas em alguns deles sim, possuindo cartilagens e articulações. É mais um exemplo de estrutura desnecessária no adulto, mas que está lá no embrião, indicando parentesco entre nós e os animais que a apresentam durante toda a vida.

Embrião humano no 1º mês de desenvolvimento, com a cauda em destaque; e radiografia de uma menina de 6 anos com uma cauda atávica. As vértebras em azul claro são normais, e as em amarelo deveriam estar fundidas no cóccix.

    A formação de um ser humano é um processo muito complexo, e também maravilhoso. Existem várias etapas onde um erro pode gerar deformações ou morte. Como diria Dawkins, “existem mais formas de estar morto do que vivo”.
    A principal parte da grande história da vida é contada na embriologia, com seus erros de projeto, mudanças de rumo na produção de estruturas e arrependimentos que recapitulam órgãos a muito esquecidos, como nos atavismos.
    O processo como um todo guarda informações de um passado muito distante, de quando ainda não éramos humanos. Parece extraordinário imaginar que um ser vivo unicelular ancestral descobriu a pluricelularidade, e após isso o desenvolvimento embrionário, agrupando diferentes tipos de células em diferentes tecidos, formando toda a diversidade de órgãos que conhecemos. Se isso tudo parece improvável, deixo apenas a resposta de J. B. S. Haldane em uma palestra onde uma criacionista da plateia diz que simplesmente não podia acreditar que, mesmo em bilhões de anos, se pudesse "ir de uma célula única a um complicado corpo humano". Haldane retruca: "Mas, madame, a senhora mesma fez isso. E em apenas nove meses".

7 semanas de gambiarras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário