quinta-feira, 5 de maio de 2011

Evidências evolutivas: o passado impresso no corpo II (“gambiarras evolutivas”)

    No último artigo comecei a discussão sobre as evidências evolutivas argumentando acerca dos órgãos vestigiais, um campo bastante conhecido da evolução, visitado inclusive por Darwin em “The descent of man, and Selection in Relation to Sex”.
    Nos dias atuais, as evidências em prol de uma origem comum dos seres vivos têm sido tão flagrantes que vários criacionistas resolveram mudar de abordagem na hora de defender sua visão de mundo. Os literalistas bíblicos têm sido vistos como fanáticos religiosos apenas, e os criacionistas mais instruídos atacam com um pouco mais de cautela e com uma roupagem toda nova a evolução. Eles afirmam que realmente ocorreu um tipo de evolução, mas guiada por um “designer inteligente” desconhecido, nada mais que uma metáfora para algum tipo de divindade. Acabaram tomando uma surra no julgamento de Dover.



    Neste artigo, proponho-me a demonstrar alguns dos erros de projeto do ser humano e outros seres, algumas “gambiarras” que funcionam, como chamei no artigo anterior, compatíveis com uma evolução por seleção natural, e não com um designer onisciente.

Gambiarras humanas

1- A fontanela (moleira)
    Nos primórdios da evolução humana, os hominídeos do gênero Australopithecus em algum momento por volta de 2,5 milhões de anos atrás tiveram uma ideia brilhante. Passaram a alimentar-se de carne de animais mortos pelos predadores da savana africana para complementar sua dieta. A melhoria das estratégias para encontrar as carcaças, e de fugir a tempo de não tornar-se a próxima refeição dos grandes felinos demandou um cérebro maior. Não se esqueça, nesta época os nossos ancestrais ainda eram as presas.

Nossos ancestrais em um piquenique.

    O nosso sistema nervoso é o que mais gasta, disparado, em nutrientes no organismo, logo, um aumento do cérebro requeria maior disponibilidade desses nutrientes. Ou seja, a alimentação à base de carne exigia maior inteligência, que exigia maior disponibilidade de nutrientes encontrados... na carne. BINGO!
    A partir desse momento, uma espiral de demandas evolutivas gerou uma cascata de novas características nas linhagens que levariam até nós. Alimentar-se de carniça demandou um cérebro maior, e exigia também um deslocamento mais eficiente por distâncias maiores para encontrar as carcaças. Isto originou o bipedalismo, que por sua vez, liberou as mãos para fazer outras coisas, como manusear objetos, o que também demandava um cérebro maior.
    O tamanho do encéfalo humano não parou mais de aumentar, e o da cabeça. A postura ereta fixou-se devido ao bipedalismo. É agora que surgem os problemas, pois o andar ereto diminuiu a pélvis humana. Tente imaginar o momento do parto: algo maior, passando por uma abertura menor. Não poderia dar certo, mas deu. O problema foi solucionado gerando outro, pois os bebês da nossa espécie passaram a nascer com uma “má-formação” na cabeça. Os ossos cranianos não são totalmente soldados, o que faz com que sejamos muito vulneráveis durante os primeiros meses de vida; é a fontanela ou moleira.


   A fontanela permite que a cabeça do bebê seja espremida e deforme durante o parto, voltando ao normal depois do nascimento. Podemos imaginar os primórdios, onde os bebês que não tinham essa característica acabavam matando suas mães e morrendo juntos no momento do parto, e isso acontece ainda hoje. Os genes que não levavam à produção da fontanela tenderam a diminuir, com isso a característica de ter a moleira espalhou-se rapidamente na população.

Deformação da cabeça no momento do parto.

    Em troca de termos um intelecto desenvolvido, pagamos com a fragilidade dos nossos filhos no momento que chegam ao mundo. Um design nada inteligente, mas que funciona. A seleção natural não escolhe o melhor, mas sim o que consegue passar seus genes para frente.

2- Testículos
    Vamos discutir agora sobre os testículos, projeto que, com o perdão do trocadilho infame, é um saco. Os testículos são responsáveis pela espermatogênese que é a etapa da reprodução em que os espermatozóides são produzidos, e este processo acontece numa temperatura em média 1 grau abaixo da do corpo. Por este motivo, fato conhecido pelos homens por razões óbvias, no frio a bolsa escrotal encolhe, para aquecer os testículos, e no calor descem para resfriá-los. Eis a grande pergunta. Ao invés de inventar esse mecanismo tosco para manter a temperatura abaixo da corporal, não seria mais prático ter testículos internos e com espermatogênese na mesma temperatura do corpo? O interessante é que alguns animais, como o elefante e as baleias são assim, afinal, ninguém se lembra de ter visto o saco deles, né? LESPA (como dizemos em Viçosa)!!!

O “esconde-esconde testicular” do elefante.

    Um detalhe interessante é que os testículos muito provavelmente eram internos nos ancestrais dos mamíferos. Uma evidência que temos disso é o “desperdício de tubo” que vemos nos canais deferentes. Estes canais levam os espermatozóides em direção à uretra, e após os testículos terem mudado sua posição interna para externa, acabaram dando uma volta desnecessária em torno dos ureteres, que levam urina para a mesma uretra. Um projetista tenta, sempre que possível, fazer economia em sua obra. Não é o que aconteceu neste caso.

Posição dos testículos e seu design “escroto”. Observe na primeira gravura a volta dada pelo canal deferente. Na segunda gravura, temos representado a posição original dos testículos internos (em verde), à direita a posição atual e à esquerda a posição mais econômica e óbvia.

3- Olho humano
    O olho é uma das estruturas mais complexas no corpo humano, mas em contrapartida é uma das mais comuns no reino animal. A estimativa é que diferentes tipos de olhos evoluíram de 40 a 60 vezes de forma totalmente independente, com várias formas, tamanhos e mecanismos de funcionamento. No caso do ser humano, o olho é do tipo câmera, com uma lente para focalizar a imagem e uma retina onde a mesma é formada. Os raios luminosos chegam à retina e a imagem é formada de cabeça para baixo, como podemos ver no esquema com os raios representado a seguir. A re-inversão da imagem é feita pelo cérebro, e a pessoa nem se dá conta.




    Atualmente, modelos de computador simulam o surgimento do nosso tipo de olho a partir de uma estrutura plana, incapaz de formar imagens, mas que possibilitava perceber diferenças de luminosidade. Mas seria isso uma vantagem? Claro que sim. Como diria Dawkins, meio olho é melhor que olho nenhum. Apenas perceber luz é muito primitivo para quem possui um olho formador de imagem, mas ainda assim é melhor do que não perceber nada.
    Qual seria então o problema nesse projeto? Afinal, parece tudo perfeito. Só parece!

O olho humano. Projeto quase perfeito.

    Em seus primórdios, quando o olho era apenas uma estrutura plana e não formava imagem, não importava a posição do nervo óptico. Portanto, a chance era de 50% de que ele se formasse em qualquer dos lados da retina, sem prejuízo algum. Para nosso azar, o “cara ou coroa ocular” colocou o nervo do lado errado da retina, obrigando-o a atravessá-la para levar as informações ao sistema nervoso. Se o nervo não tivesse surgido do lado incorreto, hoje não teríamos uma falha na visão chamada ponto cego.

Na primeira sequência, a evolução do olho como se deu, originando o ponto cego da retina; e na segunda, um tipo de olho que solucionaria esse problema. Em 1, temos olhos incapazes de formar imagens, mas que percebem luz; em 2, capazes de formar imagens, porém bastante desfocadas; e em 3, olhos formadores de imagens nítidas.

    Como não existem células para detectar luz na região do ponto cego, uma parte do campo de visão não é percebida pelo olho. O cérebro preenche esse ponto com informações sobre imagens ao redor e com informações captadas pelo outro olho, dessa forma, não notamos a existência dessa falha. O esquema abaixo serve para que você encontre o seu ponto cego. Siga as instruções e tente.

Você deve ficar bem próxima à tela. Cubra o olho direito e focalize o olho esquerdo na palavra “realidade”. Agora lentamente se afaste ou se aproxime da tela. O “a” vai desaparecer, enquanto a palavra “detectando” continuará visível. Conforme você se movimenta para frente e para trás, o “a” vai reaparecer.

Gambiarras em outros animais

    Como era de se esperar, os outros animais também apresentam uma infinidade de projetos mal feitos, reaproveitamento de estruturas e gambiarras evolutivas. Uma delas foi inclusive comentada no artigo anterior; as patas traseiras de cetáceos readaptadas para a cópula, e sem função na locomoção. Observe a gravura a seguir para relembrar.

Uma das gambiarras, comentada no artigo anterior.

    A seguir analisaremos dois casos típicos de estruturas que não serviam exatamente para o que fazem hoje, mas acabaram sendo readaptadas para desempenhar outra atividade, e por isso foram mantidas.

1- Asas de moscas e mosquitos
    As asas são estruturas quase mágicas que possibilitam para outros animais um dos sonhos mais antigos do ser humano. De várias formas e tamanhos, apresentando diversos tipos de materiais constituintes, são quase uma unanimidade entre os animais. Até alguns peixes aventuraram-se nos ares; e considerando que a maioria dos animais são insetos, chegamos a aproximadamente 2/3 do subreino metazoa sendo dotado de asas.

Peixe voador (Cypselurus heterurus)

    A maioria dos insetos possui dois pares de asas, mas os dípteros (moscas e mosquitos) possuem apenas um, como o nome indica (di=dois; pteros=asas). O segundo par das moscas acabou sendo modificado em forma de halteres (balancins), e funcionam como um giroscópio de helicóptero, possibilitando realizar manobras mais facilmente.

O giroscópio do helicóptero, mesmo princípio dos balancins da mosca; e a libélula (Anax imperator), um inseto típico, com dois pares de asas, para efeito de comparação.

    Um dos maiores dilemas a ser enfrentado pelos seres alados é qual investimento fazer: manobrabilidade ou estabilidade no voo, pois investir em um diminui o desempenho do outro. As moscas acabaram fazendo o primeiro investimento ao desenvolver os balancins.
    Certo, mas por que este exemplo pode ser citado como uma gambiarra?
    Por que os balancins obviamente não foram desenhados para o seu uso atual. São um reaproveitamento de uma estrutura anterior, as asas traseiras, como muitas vezes acontece na evolução.

Balancins em pernilongo. Mais uma gambiarra da evolução.

    Mas como podemos ter certeza que os balancins são asas readaptadas para uma nova função? Por que de vez em quando ocorre uma reversão. As moscas da fruta (Drosophila melanogaster) são muito conhecidas dos biólogos e bastante estudadas como modelos genéticos. Uma mutação que às vezes ocorre nesses animais é a chamada homeótica, que acaba transformando os balancins em asas totalmente desenvolvidas.

Drosophilas: com mutação homeótica, à esquerda, com quatro asas formadas; e normal, com apenas duas asas, à direita.

    Mais uma vez podemos ver a inexistência de um projeto anterior. A evolução começa com um modelo básico, e o motor da seleção natural vai modificando a espécie conforme as condições ambientais mudam. Neste processo, várias estruturas podem ser eliminadas, ou ter funções alteradas. Vale aqui o princípio da reciclagem estrutural.

2- Patas de cavalos
    A anatomia comparada é uma grande fonte de evidências evolutivas. Quando comparamos os órgãos em diferentes seres vivos, chegamos à conclusão de que eles podem ser homólogos ou análogos. Órgãos análogos, quando comparados, possuem uma mesma função entre si, mas os processos embrionários, a maquinaria interna, são bastante diferentes. Um exemplo clássico é a comparação entre as asas, discutidas anteriormente. A asa de uma borboleta desempenha a mesma função que a de um gavião, mas não são nem de longe produzidas da mesma forma, são, portanto, análogas.

Asas de ave e inseto. Mesma função, mas estrutura diferente. A primeira é sustentada por ossos e possui penas; a segunda é feita de quitina, podendo possui escamas, como na borboleta.

    Por sua vez, os órgãos homólogos possuem uma estrutura semelhante, sendo formados pelos mesmos processos embrionários. A função muitas vezes é igual, mas como se trata de um órgão adaptado de diferentes formas a diferentes ambientes, não precisa ser. Agora chegamos ao assunto que dá título a este item, as patas dos vertebrados, especialmente a do cavalo.
    As patas no grupo dos cordados são homólogas, pois independente de sua função, são originadas de uma mesma embriogênese, uma mesma receita básica, e possuem exatamente os mesmos ossos, somente um pouco modificados.

Mesmos ossos, mesma “receita”, mas com pitadas diferentes de cada ingrediente.

    Observando a gravura acima, fica fácil perceber a semelhança entre os ossos destes animais. Mas e os do cavalo? Teriam a mesma origem? Ai já não é tão evidente, pois de cara sentimos falta dos dedos, só pra começar.
    Os cavalos fazem parte de um grupo de animais de casco denominados ungulados, que quer dizer os que caminham sobre as unhas; e é literalmente isto que eles fazem. Caminham sobre a unha do digital 3, o dedo médio. Em seu habitat natural, formado por campos e pradarias, existe pressão seletiva para que as patas tornem-se mais resistentes, facilitando fugir de predadores sem risco de sofrer alguma lesão. A solução acabou sendo reduzir ao máximo os dedos laterais, e aumentar o dedo médio.
    Pode parecer difícil de acreditar, mas o registro fóssil das linhagens que levam ao cavalo atual é muito rico, e possuímos grande número de ancestrais identificados no registro fóssil. Observe abaixo:

Evolução do cavalo. Observe que os ancestrais possuíam mais dedos desenvolvidos que foram reduzindo-se ao longo do tempo.

Ancestrais do cavalo, e a comparação entre o Eohippus e o cavalo atual (Equus). O que 45 milhões de anos não fazem, não é?

    Nos cavalos atuais, às vezes ocorre o que chamamos atavismo, evento definido como o reaparecimento de uma característica primitiva em animais modernos. A mutação homeótica que produz asas ao invés de balancins na Drosophila é um exemplo.
    Os cavalos atávicos apresentam outros dedos funcionais, além do médio, indicando que o número era realmente maior nos ancestrais do cavalo.

Cavalos modernos com atavismo nos dedos.

    As patas com dedo único dos cavalos podem, enfim, ser consideradas uma gambiarra. São claramente modificações de uma estrutura anterior, uma reciclagem. Geralmente é muito mais fácil, do ponto de vista biológico, readaptar uma estrutura do que criar uma nova do zero, e assim os animais apresentam essa enormidade de “impressões digitais” de um passado remoto, que às vezes teima em vir à tona.
    No próximo artigo, encerrarei esta trilogia sobre evidências evolutivas falando sobre a embriologia.
    Até lá!